domingo, 23 de agosto de 2015

Folha - Trechos sobre Desejo, Amor, Ódio e Ciúme, em Spinoza

(retirados e adaptados da Obra “Ética, demonstrada à maneira dos geômetras” de Spinoza)


Capítulo 3                                                          Proposição XII

A alma esforça-se, tanto quanto pode, por imaginar as coisas que aumentam ou facilitam a potencia de agir no corpo.

Demonstração: A alegria é o sentimento de passagem para uma potência maior de ação e de pensamento. Para tal, a alma pode considerar que um corpo esteja presente (mesmo que este não esteja) com o fim de aumentar ou facilitar a potência de agir do nosso corpo. Consequentemente, durante este tempo, a potência de pensar da alma também é aumentada ou facilitada. E, portanto, a alma se esforça o tanto quanto pode para imaginar o seu objeto desejado, isto é, fantasia essa presença para motivar a si própria.


Proposição XIII

Quando a alma imagina coisas que diminuem ou reduzem a potência de agir do corpo, esforça-se, tanto quanto pode, por se recordar de coisas que excluem a existência dela.

Demonstração: Considero o amor como a alegria que acompanha a ideia de uma causa exterior (por exemplo, a presença de alguém), e o ódio como a tristeza acompanhada da ideia de uma causa exterior. Aquele que ama se esforça por ter presente e conservar aquilo que ama; e, ao contrário, aquele que odeia esforça-se por afastar e destruir a coisa que odeia. Daí se segue que a alma repugna imaginar coisas que diminuem ou reduzem a sua própria capacidade e a do corpo.


(...) Proposição XXXIII

Quando amamos alguém, esforçamo-nos, tanto quanto podemos, por fazer com que, por sua vez, ela nos ame também.

Demonstração: Se amamos uma coisa acima de todas as outras, quando não estamos com ela, esforçamo-nos por imaginá-la, tornando-a presente em nossa consciência como motivação. E quando a encontrarmos, tentaremos, pois, a afetar com alegria, isto é, fazê-la sentir uma alegria acompanhada de um pensamento de que somos nós (causa externa) que a deixamos assim, em outras palavras, esforçaremos para que ela também nos ame. Desta maneira, esforçando para que o amado fique conosco, supomos poder conservar a nossa alegria.

(...) Proposição XXXV

Se alguém imagina que a pessoa amada se une a outro, de forma igual ou ainda mais intensa do que faz com ela, terá um sentimento de ódio pela pessoa amada e invejará o outro.

Demonstração: Quem ama, imaginará, o tanto quanto for possível, o objeto de desejo unido a ele o mais estreitamente possível; e esse esforço ou apetite é ainda aumentado se ele imagina que outro deseja para si tal objeto. Contudo, esse esforço ou apetite será reduzido quando houver uma percepção de que a pessoa amada está junto a outro. Neste caso, será afetado por tristeza, entendendo que o objeto de desejo é a causa deste sentimento, e por inveja, em relação à outra pessoa que é amada no seu lugar, uma vez que essa terceira pessoa se deleita com o seu objeto de desejo impedindo-a de fazer o mesmo ou deixando-a com receio de que deixe de ser amado.

Esse ódio para com o objeto de desejo (a pessoa que amamos que se une a outro), junto com a inveja para com aquele que usufrui dele, se chama ciúme, o qual, por consequência, não é senão a flutuação da alma entre o amor e o ódio, acompanhado da ideia de um outro de quem se tem inveja. Além disso, esse ódio para com o objeto de desejo é maior na proporção da alegria que o ciumento sentia quando tal pessoa lhe dedicava carinho, e também na proporção do sentimento de amor que sua pessoa desejada nutre para com o novo indivíduo, com quem ela se juntou. Com efeito, só pelo fato de odiar este último, odiará também a pessoa que se ama, pois imagina-a afetando de alegria aquele que ele tanto odeia; e também porque é forçado a associar a imagem da pessoa amada com a imagem daquele que odeia e inveja.



Proposição XXXVI

Aquele que se recorda de uma coisa com que uma vez se deleitou deseja possuí-la com as mesmas circunstâncias que da primeira vez em que se deleitou com ela.

Demonstração: Quando alguém se sente alegre, é comum associar este sentimento a toda circunstância em que se deu tal alegria. Logo, desejará possuir tudo novamente, isto é, reconstituir todas as circunstâncias que a fizeram bem da primeira vez. Portanto, o desejo provém da memória de um prazer mais a interpretação de quais foram as suas causas.

Entretanto, se aquele que ama descobre que uma dessas circunstâncias falta, imaginará que a causa de sua alegria está ausente e, portanto, ficará triste. A tristeza, no que diz respeito à ausência do que amamos, chama-se desejo frustrado.


Modesto comentário do professor

Podemos concluir, a partir de uma leitura de Spinoza, que o desejo mal conduzido pode desembocar tanto no medo quanto na frustração. A frustração sempre é fruto da expectativa. E a expectativa, ou esperança, é uma alegria instável nascida de uma lembrança ou de uma fantasia sobre o futuro. Curiosamente, há uma forte similaridade entre a esperança e o medo, como podemos perceber na definição de Spinoza sobre o medo: uma tristeza instável nascida de uma lembrança ou fantasia...

Desta forma, apenas estaria exposto à ira ou ao temor aquele que, desfortunadamente, cria ideias que levam o seu próprio desejo a se perder em situações desagradáveis. Por outro lado, o filósofo, isto é, aquele que busca com afinco a sabedoria sobre si mesmo, aprende a utilizar a razão de forma a dar vida às suas paixões mais fortes e, portanto, busca sempre nutrir o desejo por aquilo que lhe faz bem, e por isso se torna cada vez mais alegre e menos receoso.


E essa via de conhecimento passa, por exemplo, pela constatação de que o amor é sempre mais vantajoso do que o ódio. Tratemos de justificar esta conclusão clichê. O amor consiste em aprender a se sentir alegre, apostando na companhia de coisas accessíveis – geralmente, quem não ama é porque se acostuma a visar situações impossíveis ou inacessíveis; enquanto que, o ódio, o desejo de promover dano a outro que interpretamos como causa de nosso sentimento de fraqueza, sempre parte de uma ideia equivocada sobre como alcançar a felicidade. Portanto, não é alguém, mas somente a ignorância que pode estagnar as nossas potências para viver, fazendo-nos ficar odiosos enquanto poderíamos ser implacáveis amantes. 

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