Seguem aqui os textos trabalhados em sala do nosso querido Rubem Alves.
A arte de produzir fome
Adélia Prado me ensina pedagogia. Diz ela: “Não quero faca
nem queijo; quero é fome”. O comer não começa com o queijo. O comer começa na
fome de comer queijo. Se não tenho fome é inútil ter queijo. Mas se tenho fome
de queijo e não tenho queijo, eu dou um jeito de arranjar um queijo…
Sugeri, faz muitos anos, que, para se entrar numa escola,
alunos e professores deveriam passar por uma cozinha. Os cozinheiros bem que
podem dar lições aos professores. Foi na cozinha que as feiticeiras Babette e a
Tita realizaram suas magias… (...) e elas sabiam que os banquetes não começam
com a comida que se serve. Eles se iniciam com a fome. A verdadeira cozinheira
é aquela que sabe a arte de produzir fome…
Quando vivi nos Estados Unidos, minha família e eu
visitávamos, vez por outra, uma parenta distante, nascida na Alemanha. Seus
hábitos
germâ
nicos eram rígidos e implacáveis. Não admitia que uma criança se recusasse a
comer a comida que era servida. Meus dois filhos, meninos, movidos pelo medo,
comiam em silêncio. Mas eu me lembro de uma vez em que, voltando para casa, foi
preciso parar o carro para que vomitassem. Sem fome, o corpo se recusa a comer.
Forçado, ele vomita.
Toda experiência de aprendizagem se inicia com uma
experiência afetiva. É a fome que põe em funcionamento o aparelho pensador.
Fome é afeto. O pensamento nasce do afeto, nasce da fome. Não confundir afeto
com beijinhos e carinhos. Afeto, do latim “affetare”, quer dizer “ir atrás”. É
o movimento da alma na busca do objeto de sua fome. É o Eros platônico, a fome
que faz a alma voar em busca do fruto sonhado.
Eu era menino. Ao lado da casa onde morava, havia uma casa
com um pomar enorme que eu devorava com os olhos, olhando sobre o muro. Pois
aconteceu que uma árvore cujos galhos chegavam a dois metros do muro se cobriu
de frutinhas que eu não conhecia. Eram pequenas, redondas, vermelhas,
brilhantes. A simples visão daquelas frutinhas vermelhas provocou o meu desejo.
Eu queria comê-las. E foi então que, provocada pelo meu desejo, minha máquina de
pensar se pôs a funcionar. Anote isso: o pensamento é a ponte que o corpo
constrói a fim de chegar ao objeto do seu desejo.
Se eu não tivesse visto e desejado as ditas frutinhas, minha
máquina de pensar teria permanecido parada. Imagine se a vizinha, ao ver os
meus olhos desejantes sobre o muro, com dó de mim, tivesse me dado um punhado
das ditas frutinhas, as pitangas. Nesse caso, também minha máquina de pensar
não teria funcionado. Meu desejo teria se realizado por meio de um atalho, sem
que eu tivesse tido necessidade de pensar. Anote isso também: se o desejo for
satisfeito, a máquina de pensar não pensa. Assim, realizando-se o desejo, o
pensamento não acontece. A maneira mais fácil de abortar o pensamento é
realizando o desejo. Esse é o pecado de muitos pais e professores que ensinam
as respostas antes que tivesse havido perguntas.
Provocada pelo meu desejo, minha máquina de pensar me fez
uma primeira sugestão, criminosa. “Pule o muro à noite e roube as pitangas.”
Furto, fruto, tão próximos… Sim, de fato era uma solução racional. O furto me
levaria ao fruto desejado. Mas havia um senão: o medo. E se eu fosse pilhado no
momento do meu furto? Assim, rejeitei o pensamento criminoso, pelo seu perigo.
Mas o desejo continuou e minha máquina de pensar tratou de
encontrar outra solução: “Construa uma maquineta de roubar pitangas”. McLuhan
nos ensinou que todos os meios técnicos são extensões do corpo. Bicicletas são
extensões das pernas, óculos são extensões dos olhos, facas são extensões das
unhas. Uma maquineta de roubar pitangas teria de ser uma extensão do braço. Um
braço comprido, com cerca de dois metros. Peguei um pedaço de bambu. Mas um
braço comprido de bambu, sem uma mão, seria inútil: as pitangas cairiam.
Achei uma lata de massa de tomates vazia. Amarrei-a com um
arame na ponta do bambu. E lhe fiz um dente, que funcionasse como um dedo que
segura a fruta. Feita a minha máquina, apanhei todas as pitangas que quis e
satisfiz meu desejo. Anote isso também: conhecimentos são extensões do corpo
para a realização do desejo.
Imagine agora se eu, mudando-me para um apartamento no Rio
de Janeiro, tivesse a idéia de ensinar ao menino meu vizinho a arte de fabricar
maquinetas de roubar pitangas. Ele me olharia com desinteresse e pensaria que
eu estava louco. No prédio, não havia pitangas para serem roubadas. A cabeça
não pensa aquilo que o coração não pede. E anote isso também: conhecimentos que
não são nascidos do desejo são como uma maravilhosa cozinha na casa de um homem
que sofre de anorexia. Homem sem fome: o fogão nunca será aceso. O banquete
nunca será servido.
Dizia Miguel de Unamuno: “Saber por saber: isso é inumano…”
A tarefa do professor é a mesma da cozinheira: antes de dar faca e queijo ao
aluno, provocar a fome… Se ele tiver fome, mesmo que não haja queijo, ele
acabará por fazer uma maquineta de roubá-los. Toda tese acadêmica deveria ser
isso: uma maquineta de roubar o objeto que se deseja…
Escola e Sofrimento
Estou com medo de que as crianças me chamem de mentiroso.
Pois eu disse que o negócio dos professores é ensinar a felicidade. Acontece
que eu não conheço nenhuma criança que concorde com isto. Se elas já tivessem
aprendido as lições da política, me acusariam de porta voz da classe dominante.
Pois, como todos sabem, mas ninguém tem coragem de dizer, toda escola tem uma
classe dominante e uma classe dominada: a primeira, formada por professores e
administradores, e que detém o monopólio do saber, e a segunda, formada pelos
alunos, que detém o monopólio da ignorância, e que deve submeter o seu comportamento
e o seu pensamento aos seus superiores, se desejam passar de ano.
Basta contemplar os olhos amedrontados das crianças e os
seus rostos cheios de ansiedade para compreender que a escola lhes traz
sofrimento. O meu palpite é que, se se fizer uma pesquisa entre as crianças e
os adolescentes sobre as suas experiências de alegria na escola, eles terão
muito que falar sobre a amizade e o companheirismo entre eles, mas pouquíssimas
serão as referências à alegria de estudar, compreender e aprender. A classe
dominante argumentará que o testemunho dos alunos não deve ser levado em
consideração. Eles não sabem, ainda… Quem sabe são os professores e os
administradores.
Acontece que as crianças não estão sozinhas neste
julgamento. Eu mesmo só me lembro com alegria de dois professores dos meus
tempos de grupo, ginásio e científico. A primeira, uma gorda e maternal
senhora, professora do curso de admissão, tratava-nos a todos como filhos. Com
ela era como se todos fôssemos uma grande família. O outro, professor de
Literatura, foi a primeira pessoa a me introduzir nas delícias da leitura. Ele
falava sobre os grandes clássicos com tal amor que deles nunca pude me
esquecer. Quanto aos outros, a minha impressão era a de que nos consideravam
como inimigos a serem confundidos e torturados por um saber cujas finalidades e
utilidade nunca se deram ao trabalho de nos explicar. Compreende-se, portanto,
que entre as nossas maiores alegrias estava a notícia de que o professor estava
doente e não poderia dar a aula. E até mesmo uma dor de barriga ou um resfriado
era motivo de alegria, quando a doença nos dava uma desculpa aceitável para não
ir à escola.
Não me espanto, portanto, que tenha aprendido tão pouco na
escola. O que aprendi foi fora dela e contra ela. Jorge Luís Borges passou por
experiência semelhante. Declarou que estudou a vida inteira, menos nos anos em
que esteve na escola. Era, de fato, difícil amar as disciplinas representadas
por rostos e vozes que não queriam ser amados.
Esta situação, ao que parece, tem sido a norma, tanto que e
assim que aparece freqüentemente relatada na literatura. Romain Rolland conta a
experiência de um aluno: “… afinal de contas, não entender nada já é um hábito.
Três quartas partes do que se diz e do que me fazem escrever na escola: a
gramática, ciências, a moral e mais um terço das palavras que leio, que me
ditam, que eu mesmo emprego – eu não sei o que elas querem dizer. Já observei
que em minhas redações as que eu menos compreendo são as que levam mais chances
de ser classificadas em primeiro lugar”. Mas nem precisaríamos ler Rolland:
bastaria ler os textos que os nossos filhos têm de ler e aprender. Concordo com
Goodmann na sua afirmação de que a maioria dos estudantes nos colégios não
desejam estar lá. Estão lá porque são obrigados.
Os métodos clássicos de tortura escolar como a palmatória e
a vara já foram abolidos. Mas poderá haver sofrimento maior para uma criança ou
um adolescente que ser forçado a mover-se numa floresta de informações que ele
não consegue compreender, e que nenhuma relação parecem ter com sua vida?
Compreende-se que, com o passar do tempo a inteligência se encolha por medo e
horror diante dos desafios intelectuais, e que o aluno passe a se considerar
como um burro. Quando a verdade é outra: a sua inteligência foi intimidada
pelos professores e, por isto, ficou paralisada.
Os técnicos em educação desenvolveram métodos de avaliar a
aprendizagem e, a partir dos seus resultados, classificam os alunos. Mas
ninguém jamais pensou em avaliar a alegria dos estudantes – mesmo porque não há
métodos objetivos para tal. Porque a alegria é uma condição interior, uma
experiência de riqueza e de liberdade de pensamentos e sentimentos. A educação,
fascinada pelo conhecimento do mundo, esqueceu-se de que sua vocação é
despertar o potencial único que jaz adormecido em cada estudante. Daí o
paradoxo com que sempre nos defrontamos: quanto maior o conhecimento, menor a
sabedoria. T. S. Eliot fazia esta terrível pergunta, que deveria ser motivo de
meditação para todos os professores: “Onde está a sabedoria que perdemos no
conhecimento?”.
Vai aqui este pedido aos professores, pedido de alguém que
sofre ao ver o rosto aflito das crianças, dos adolescentes: lembrem-se de que
vocês são pastores da alegria, e que a sua responsabilidade primeira é definida
por um rosto que lhes faz um pedido: “Por favor, me ajude a ser feliz…”
(retirados do site: http://rubemalves.wordpress.com/ )
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